Ivan Ângelo é um jornalista, cronista e romancista brasileiro. Começou a escrever os primeiros contos em 1954, sendo logo premiado num concurso da prefeitura de Belo Horizonte com o conto Culpado sem crime. Em 1965 mudou-se para São Paulo, onde fez parte da primeira equipe do Jornal da Tarde.
Considerações em torno das aves-balas (Ivan Ângelo)
Balas perdidas transformam-se em notícia por todo o país.
Desde que isso começou — não faz muito tempo, nem pouco — mais de uma
centena de pessoas foram atingidas só na cidade do Rio de Janeiro. Em São Paulo
não se conta, ou perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas sinistramente
trabalham em silêncio. Em Salvador são abafadas pelo baticum dos tambores. Sem
nenhum bairrismo elas voam geral, irrompem num circo, num ônibus, numa janela
de sala de estar, numa padaria, em muitas escolas, numa praça, num banco, numa
rua e se alojam num corpo. Aí se livram da sua característica principal — a de
perdidas — e se acham, são achadas.
Por que se diz perdida? Perdida é a bala que não se encontra nunca,
são as que voam até perder a força e tombam, exaustas e sem glórias de Jornal
Nacional, num mato qualquer.
A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem tem sempre uma lógica. Quem
perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem a achou.
Uma pessoa quando perdida, não tem rumo. Se diz: desorientada. Uma
bala não. A bala perdida segue reta e veloz como quem sabe aonde vai. Igualzinho
às outras, suas irmãs, que levam endereço certo.
Perdida, então quer dizer o quê? Desperdiçada? A linguagem nem sempre
tem lógica. Quem perdeu a bala perdida? O atirador? Pior para quem achou.
Quando acha um corpo a bala pode ainda se chamar perdida? A que acha,
mesmo não sendo aquele corpo que buscava, será menos desperdiçada do que as
outras, que esbarram em uma simples parede?
Ninguém procura balas perdidas. Nem quem as perdeu, nem quem as
encontrou, sem querer. São indesejadas, e quanto mais o sejam, mais ansiosas
parecem por alojar-se. Essas balas voadoras, libertas da sua casca, só são
realmente perdidas se ninguém nunca mais as viu. Então são também inúteis, pois
isso é a negação da sua essência mortal.
Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora: cria órfãos, viúvas,
pais inconsoláveis. Quem a dispara sabe disso. Quem fabrica e vende sabe disso.
Quem recolhe impostos sobre ela sabe muito bem. Porque ela não serve para mais
nada, para isso foi feita.
Seria próprio chamar de desaparecidas essas inúteis? No país das balas
perdidas, perdem-se também crianças, chamadas desaparecidas. Mas esta já é
outra história.
Não, a essas balas não se poderia chamar de desaparecidas porque
ninguém sabia delas antes de se libertarem de sua casca, ainda pacíficas,
guardando para si sua capacidade voadora e mortal. Só depois que explodem é que
voam, e então se perdem ou não.
O poeta João Cabral de Melo Neto deu um lindo nome a essas balas sem
dono: ave-bala. No poema “Morte e vida Severina”, o retirante pergunta aos que
levam um defunto: “Quem contra ele soltou / essa ave-bala”. E a resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das almas, / Sempre
há uma bala voando / desocupada”.
Éramos um povo acostumado à arma branca, à peixeira, ao punhal, ao
facão; herdamos a tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço, capar. Meninos
já tinham seu canivete de ponta. Malandros riscavam o ar com navalhas. Mulheres
da vida brandiam giletes. Numa arruaça, quem metia a mão numa cara, dava
rasteiras. Em algum momento o “te meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele
“te meto a mão na cara” virou “te meto uma bala na cara”. Começaram a voar as
aves-balas.
O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o faroeste, os gangsters,
a TV, guerras sujas, guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas. Nasceu o culto
da pontaria certeira. Billy the Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e Jesse
James, Schwarzenegger, Stalone, Matrix. “No século do progresso / o revólver teve ingresso
/ pra acabar com a valentia” — cantou Noel Rosa nos anos 1930.
Surgiu outro tipo de valente, o que fica atrás do revólver. Não é preciso
arriscar-se, chegar perto para ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe fere”,
diz o poeta João Cabral. Ninguém pense que a influência estrangeira é
justificativa. Não, não importamos a violência, ela é mais nossa que o
petróleo. Importamos foi a cultura da arma de fogo.
No país das balas perdidas, perdem-se também crianças, nem sempre
desaparecidas. Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde brincar por aí de
soltar aves-balas, nem sempre perdidas.
O comprador de
aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2000.
Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
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