O cajueiro (Rubem Braga)
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas
recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro atrás da casa.
Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor e morreu há muito tempo.
Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de
espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta
saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro
porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da
tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira
que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”,
violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado da casa e o imenso
cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada
menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu
fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o
telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na
brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos
amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera: mas assim mesmo fiz questão de que
Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de
outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de
ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não
quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa.
Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em
nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas
foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.
Setembro, 1954.
Cem crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1956.
Pavão (Rubem Braga)
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas
cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores
todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas
bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um
arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir
o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor;
seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que
ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos
recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Ai de ti,
Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.
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